Racismo Ambiental na Sala de Aula: Como Abordar o Tema e Conectar com a BNCC

Tornando o currículo relevante e transformador

As recentes ondas de calor, enchentes e deslizamentos que assolam o Brasil deixam claro que os eventos climáticos extremos não afetam a todos da mesma forma. Qual a cor dos corpos levados pelas enchentes e soterrados pelos deslizamentos? Quem são as pessoas que moram nas favelas, morros e beiras de rios, onde a infraestrutura é precária e o risco é constante?

A resposta a essas perguntas passa por um conceito fundamental: o Racismo Ambiental. Essa não é apenas uma teoria distante, mas uma ferramenta poderosa para que os alunos analisem criticamente o próprio território e compreendam as dinâmicas de poder que moldam suas realidades. Mais do que um guia, este material busca instrumentalizar educadores para provocar uma práxis pedagógica transformadora, construindo pontes entre o currículo e a luta por justiça ambiental. Nosso objetivo é definir o conceito, explorar suas raízes históricas no Brasil e apresentar atividades alinhadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

“Trazer esse debate para a sala de aula não é apenas cumprir a lei, mas tornar o currículo vivo, relevante e transformador, mostrando aos alunos como analisar criticamente seu próprio território e identificar mecanismos de poder e exclusão.”

O que é Racismo Ambiental? Definindo o conceito

Para aplicar o conceito em sala de aula, é essencial ter clareza sobre sua definição e manifestações.

Uma definição clara

O sociólogo Robert Bullard, pioneiro no tema, define o racismo ambiental como: “Qualquer política, prática ou diretiva que afeta ou prejudica de maneira diferenciada (intencional ou não) indivíduos, grupos ou comunidades com base em raça ou cor”. O conceito vai além da intenção, focando no impacto desproporcional que certas ações ou omissões causam sobre grupos historicamente vulnerabilizados, independentemente da motivação original.

Como ele se manifesta no território

O racismo ambiental se materializa no espaço geográfico de diversas formas. Exemplos concretos incluem:

  • Imposição de injustiças ambientais, como a proximidade forçada de comunidades (negros periféricos, indígenas, ribeirinhos, quilombolas) a instalações industriais, lixões, mineradoras e barragens.
  • Exclusão das comunidades da tomada de decisões políticas que afetam seu ambiente e sua saúde.
  • Falta de acesso a espaços verdes seguros e saudáveis, como parques e praças arborizadas.
  • Negação de acesso a recursos naturais essenciais, como água potável e terra, devido à contaminação industrial ou à falta de infraestrutura básica.
  • Falta de saneamento básico e presença de esgoto a céu aberto em favelas e periferias, em contraste com a infraestrutura completa de bairros nobres.

A conexão com o racismo estrutural

O racismo ambiental não é um fenômeno isolado. Conforme explicam pensadores como Silvio de Almeida e Arivaldo Santos de Souza, ele é uma das formas de materialização do racismo estrutural. Manifesta-se pela retirada de direitos de grupos humanos nos territórios que ocupam, resultando em condições de vida insalubres, vulnerabilidade a desastres e exposição à violência. Em outras palavras, o racismo ambiental é o mapa do racismo estrutural. É a forma como a desigualdade sistêmica se torna visível na paisagem, definindo quem respira ar puro e quem vive ao lado do lixão.

As raízes históricas no Brasil: um projeto de desigualdade

Compreender o racismo ambiental no Brasil exige uma viagem à nossa formação histórica. Como afirma a jornalista Mariana Belmont, “O Racismo ambiental chegou com as caravelas”. A herança do processo colonial de exploração da terra e dos corpos é visível até hoje na organização de nossas cidades e campos.

Um marco legal desse processo foi a “Lei de Terras” de 1850, que a ativista Selma Dealdina identifica como um mecanismo que oficializou a concentração de terras nas mãos de uma elite branca e dificultou o acesso à propriedade para a população negra recém-liberta da escravidão, empurrando-a para a informalidade e a marginalização.

A urbanização brasileira aprofundou essa lógica, sendo descrita pela Coalizão Negra Por Direitos como uma “divisão racial do espaço”. A população negra foi sistematicamente empurrada para as periferias — favelas, morros, palafitas e áreas de risco —, longe da infraestrutura, dos serviços e das oportunidades dos centros urbanos. A escritora Carolina Maria de Jesus, em sua obra clássica “Quarto de Despejo”, capturou essa realidade com precisão, descrevendo as periferias como o “quarto de despejo” da cidade, o lugar para onde se joga o que é considerado indesejável.

Evidências do problema: o que os dados revelam 

Os dados a seguir são a radiografia da desigualdade que estrutura o território brasileiro. Eles transformam percepções em fatos e servem como ponto de partida para a investigação em sala de aula.

  • Dados do Censo 2022):
    • Saneamento Básico Adequado: 83,5% da população branca tem acesso, contra 75% da preta, 68,9% da parda e apenas 29,9% da indígena.
    • Desigualdade Urbana: Em todos os 20 municípios mais populosos do Brasil, a população branca tem mais acesso a água, esgoto e coleta de lixo do que as populações preta, parda e indígena.
  • Impacto das Mudanças Climáticas:
    • Um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) aponta que, na última década, o número de mortes por secas, enchentes e tempestades foi 15 vezes maior em regiões mais vulneráveis e marginalizadas.

Como esses números se manifestam em nosso bairro? Esta é a pergunta que pode guiar a investigação em sala de aula.

Guia para educadores: conectando o Racismo Ambiental à BNCC

Abordar o racismo ambiental é uma oportunidade única de desenvolver competências e habilidades essenciais previstas na BNCC, tornando o aprendizado mais conectado à realidade dos estudantes.

5.1. Um Tema Transversal para Desenvolver Competências Gerais

O tema permite trabalhar de forma integrada diversas Competências Gerais da BNCC:

  1. Competência 1 (Conhecimento): Analisar o próprio bairro ou cidade à luz da história da ocupação territorial do Brasil, utilizando conhecimentos da Geografia e da História para entender a realidade atual.
  2. Competência 3 (Repertório Cultural): Estudar manifestações culturais de comunidades quilombolas e indígenas, compreendendo-as como formas de resistência, cuidado com o território e produção de conhecimento.
  3. Competência 6 (Trabalho e Projeto de Vida): Valorizar os saberes ancestrais e tradicionais sobre o meio ambiente, como os conhecimentos sobre etnobotânica e agrofloresta apresentados pela pesquisadora Ângela Gomes, mostrando outras formas de relação com a natureza e o trabalho.
  4. Competência 9 (Empatia e Cooperação): Promover debates sobre justiça ambiental, exercitando a empatia com as comunidades afetadas e desenvolvendo argumentos para combater o preconceito e a discriminação.

5.2. Atividades Práticas por Disciplina

Aqui estão algumas sugestões de atividades, organizadas por área do conhecimento:

Geografia (EF08GE01, EM13GE102)

  • Cartografando a Desigualdade: Desafie os estudantes a se tornarem cartógrafos da desigualdade em seu próprio município. Eles devem pesquisar e sobrepor mapas que revelem a distribuição de:
    • Áreas verdes (parques, praças).
    • Redes de saneamento básico.
    • Áreas de risco geológico (encostas, margens de rios).
    • Em seguida, cruzar essas informações com dados de renda e raça por bairro (se disponíveis em bases de dados públicas). O objetivo é visualizar a desigualdade socioespacial, usando como referência o contraste evidente entre o Sol Nascente (maior favela do Brasil) e o Lago Sul em Brasília.

Sociologia (EM13CHS101)

  • Tribunal de Ideias: Promova um tribunal de ideias onde os estudantes julgarão a questão: “A falta de infraestrutura em certos bairros é uma coincidência ou um projeto?”. Utilize como evidências trechos do documentário “Racismo ambiental | Jornada”, do Tribunal Superior do Trabalho. Os alunos, divididos em grupos de “acusação” e “defesa”, devem analisar os depoimentos e construir argumentos para debater como a ausência do Estado e as desigualdades sociais se materializam no espaço.

História (EF09HI05)

  • Escavando Histórias de Resistência: Incite os estudantes a realizarem um projeto de pesquisa sobre processos históricos de resistência. Eles podem investigar:
    • A história da formação de quilombos na região, entendendo-os não apenas como refúgios, mas como territórios de resistência cultural e preservação ambiental.
    • Casos de mobilização comunitária contra a instalação de indústrias poluentes, lixões ou outros empreendimentos de grande impacto em suas cidades ou regiões.

Ciências (EF09CI14)

  • Investigação sobre Saúde e Ambiente: Instigue uma investigação científica que conecte saúde pública e condições ambientais. Os alunos podem pesquisar:
    • A relação entre a falta de saneamento básico e a incidência de doenças de veiculação hídrica (como as mencionadas nos textos sobre o Zika Vírus e nos depoimentos de moradores).
    • Como desastres como deslizamentos e enchentes impactam a saúde física (ferimentos, doenças) e mental (estresse pós-traumático, ansiedade) da população afetada.

Proposta Interdisciplinar: O Mapa Vivo do Nosso Território

Combine as atividades em um grande projeto: “O Mapa Vivo do Nosso Território”. Os estudantes podem usar a Geografia para mapear a distribuição de recursos e riscos no bairro; a História para pesquisar a formação da comunidade e suas lutas; as Ciências para analisar a qualidade da água ou coletar dados de saúde local; e a Sociologia para realizar entrevistas com moradores mais antigos, registrando suas memórias e percepções sobre as transformações do ambiente. O resultado pode ser um documentário, uma exposição ou um seminário aberto à comunidade escolar.

Conclusão: educar para a justiça ambiental

Levar o debate sobre racismo ambiental para a sala de aula não é uma escolha, mas uma exigência ética e pedagógica. É a ferramenta para descolonizar o currículo e formar cidadãos capazes de desmantelar as estruturas que perpetuam a injustiça. Ao conectar o conteúdo à vida real dos estudantes, a escola cumpre seu papel de agente transformador, capacitando-os a lutar por um futuro mais justo e sustentável. Educar para a justiça ambiental é, em essência, educar para a cidadania plena.

“Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz.” — A Carta da Terra

 

Redação do Instituto Significare