
Este é um paradoxo comum nas escolas brasileiras. A Lei 10.639/03, uma conquista histórica do Movimento Negro, determina que o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana seja integrado em todo o currículo da Educação Básica. No entanto, na prática, muitos educadores sentem dificuldade em aplicar a lei de forma contínua, e a abordagem frequentemente se torna intermitente, concentrada em datas específicas como o Dia da Consciência Negra.
O objetivo deste artigo é fornecer ferramentas e inspiração para transformar essa realidade. Apresentaremos princípios e estratégias práticas para uma integração transversal e constante do tema ao longo de todo o ano letivo, transformando o que para alguns parece uma “utopia” em uma prática pedagógica diária e consistente.
A Lei 10.639/2003 representa um marco legal resultante de um longo processo de luta do Movimento Negro. Ela torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as escolas, públicas e privadas, da Educação Básica. Contudo, mais de duas décadas após sua sanção, a implementação ainda é um grande desafio. Uma pesquisa de 2023, realizada por Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, apontou que 71% dos municípios realizam pouca ou nenhuma ação para efetivá-la.
Esse cenário é agravado por algumas armadilhas pedagógicas comuns que dificultam a aplicação efetiva da lei:
Diante deste cenário, não surpreende que, para muitos docentes, a aplicação plena da lei pareça uma “utopia”.
Para superar os desafios, não basta adicionar novos conteúdos; é preciso uma mudança de postura pedagógica, fundamentada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Os três princípios a seguir são os pilares que sustentam essa nova forma de ser e estar na educação.
Consciência Política e Histórica da Diversidade Este princípio orienta o educador a desconstruir ativamente o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento. Na prática, significa reconhecer que a sociedade brasileira é formada por diferentes grupos étnico-raciais com histórias, culturas e saberes igualmente valiosos, questionando a narrativa eurocêntrica que historicamente dominou os currículos.
Fortalecimento de Identidades e de Direitos O objetivo aqui é romper com imagens negativas e estereótipos que afetam a autoestima dos estudantes negros. A prática pedagógica deve promover o orgulho do pertencimento étnico-racial, garantindo o direito de todos os alunos a se reconhecerem positivamente na cultura e na história nacional, valorizando suas identidades.
Ações Educativas de Combate ao Racismo e a Discriminações Este princípio convoca o professor a ser um agente ativo na luta contra o preconceito. Isso se traduz em criar um ambiente de diálogo seguro, valorizar diferentes formas de expressão — como a oralidade e a corporeidade, tão presentes nas culturas de matriz africana — e enfrentar diretamente atitudes e falas discriminatórias no dia a dia da escola.
As ferramentas a seguir materializam os princípios de fortalecimento de identidades e de consciência histórica em atividades concretas para o dia a dia da sala de aula. Superar a abordagem pontual exige integrar a temática em diferentes momentos e disciplinas.
A Lei 10.639/03 prevê a aplicação em todo o currículo escolar, não se restringindo às disciplinas de História, Literatura ou Artes. Um exemplo poderoso de integração transversal é a Etnomatemática, conceito desenvolvido pelo educador Ubiratan D’Ambrosio, que estuda a matemática praticada e elaborada por diferentes grupos culturais em seu cotidiano.
Veja como aplicá-la em sala de aula:
Para romper com a exclusividade de novembro, crie um calendário com múltiplos pontos de discussão ao longo do ano. As Diretrizes Curriculares sugerem datas importantes que podem orientar o planejamento:
É fundamental apresentar uma perspectiva positiva e de protagonismo, que vá além da narrativa da escravização. Apresente aos alunos a riqueza da história e cultura africana e afro-brasileira.
Sabemos que o esforço individual, por mais potente que seja, pode ser exaustivo. Por isso, é fundamental construir um ecossistema de apoio na escola e na rede de ensino. As ações estratégicas a seguir não são apenas boas práticas; elas são o antídoto direto para as armadilhas da “pedagogia do evento” e do “reducionismo histórico” discutidas no início deste guia.
Para alguns educadores, diante de tantos desafios, a aplicação plena da Lei 10.639/03 pode parecer uma “utopia”. A complexidade é real, mas não intransponível.
Ao adotar os princípios e as ferramentas práticas apresentados neste artigo, é possível transformar essa percepção. A mudança começa com a decisão de ir além de novembro, integrando a riqueza da história e cultura africana e afro-brasileira ao cotidiano escolar. Lembre-se: cada plano de aula, cada livro escolhido, cada conversa em sala é uma oportunidade de construir a educação antirracista que nossos alunos merecem. Você não é apenas um professor; você é um arquiteto de uma sociedade mais justa.
“Ver uma criança valorizando sua raça, sua cor, seu cabelo, sua vestimenta, sua religião, não tem preço.”
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