Inserindo a História e Cultura Afro-Brasileira para Além do Mês de Novembro

Você já se pegou ensinando sobre cultura africana apenas no mês de novembro?

Este é um paradoxo comum nas escolas brasileiras. A Lei 10.639/03, uma conquista histórica do Movimento Negro, determina que o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana seja integrado em todo o currículo da Educação Básica. No entanto, na prática, muitos educadores sentem dificuldade em aplicar a lei de forma contínua, e a abordagem frequentemente se torna intermitente, concentrada em datas específicas como o Dia da Consciência Negra.

O objetivo deste artigo é fornecer ferramentas e inspiração para transformar essa realidade. Apresentaremos princípios e estratégias práticas para uma integração transversal e constante do tema ao longo de todo o ano letivo, transformando o que para alguns parece uma “utopia” em uma prática pedagógica diária e consistente.

1. O Desafio: Da Lei à Sala de Aula

A Lei 10.639/2003 representa um marco legal resultante de um longo processo de luta do Movimento Negro. Ela torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as escolas, públicas e privadas, da Educação Básica. Contudo, mais de duas décadas após sua sanção, a implementação ainda é um grande desafio. Uma pesquisa de 2023, realizada por Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, apontou que 71% dos municípios realizam pouca ou nenhuma ação para efetivá-la.

Esse cenário é agravado por algumas armadilhas pedagógicas comuns que dificultam a aplicação efetiva da lei:

  • A “Pedagogia do Evento”: Limitar a abordagem ao Dia da Consciência Negra, tratando o tema de forma pontual e desarticulada do currículo regular. Isso impede a construção de um conhecimento profundo e contínuo.
  • O Reducionismo Histórico: Focar quase exclusivamente no período da escravidão. Essa abordagem não apenas apaga séculos de conhecimento e poder, mas ensina aos nossos alunos negros que sua história começa e termina na opressão, negando-lhes referências de realeza, ciência e resistência.
  • A Abordagem Folclorizada: Apresentar a cultura afro-brasileira apenas por meio de manifestações como danças e comidas. Apresentar a capoeira apenas como uma dança, sem explorar sua dimensão como estratégia de luta e resistência, é esvaziar seu poder político e transformá-la em mero entretenimento.

Diante deste cenário, não surpreende que, para muitos docentes, a aplicação plena da lei pareça uma “utopia”.

2. Repensando a Abordagem: Princípios para uma Educação Antirracista Contínua

Para superar os desafios, não basta adicionar novos conteúdos; é preciso uma mudança de postura pedagógica, fundamentada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Os três princípios a seguir são os pilares que sustentam essa nova forma de ser e estar na educação.

Consciência Política e Histórica da Diversidade Este princípio orienta o educador a desconstruir ativamente o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento. Na prática, significa reconhecer que a sociedade brasileira é formada por diferentes grupos étnico-raciais com histórias, culturas e saberes igualmente valiosos, questionando a narrativa eurocêntrica que historicamente dominou os currículos.

Fortalecimento de Identidades e de Direitos O objetivo aqui é romper com imagens negativas e estereótipos que afetam a autoestima dos estudantes negros. A prática pedagógica deve promover o orgulho do pertencimento étnico-racial, garantindo o direito de todos os alunos a se reconhecerem positivamente na cultura e na história nacional, valorizando suas identidades.

Ações Educativas de Combate ao Racismo e a Discriminações Este princípio convoca o professor a ser um agente ativo na luta contra o preconceito. Isso se traduz em criar um ambiente de diálogo seguro, valorizar diferentes formas de expressão — como a oralidade e a corporeidade, tão presentes nas culturas de matriz africana — e enfrentar diretamente atitudes e falas discriminatórias no dia a dia da escola.

3. Ferramentas Práticas para a Integração Transversal

As ferramentas a seguir materializam os princípios de fortalecimento de identidades e de consciência histórica em atividades concretas para o dia a dia da sala de aula. Superar a abordagem pontual exige integrar a temática em diferentes momentos e disciplinas.

3.1. Em Todas as Disciplinas, o Ano Inteiro

A Lei 10.639/03 prevê a aplicação em todo o currículo escolar, não se restringindo às disciplinas de História, Literatura ou Artes. Um exemplo poderoso de integração transversal é a Etnomatemática, conceito desenvolvido pelo educador Ubiratan D’Ambrosio, que estuda a matemática praticada e elaborada por diferentes grupos culturais em seu cotidiano.

Veja como aplicá-la em sala de aula:

  1. Tranças Afro na Aula de Matemática: Imagine a surpresa e o engajamento dos seus alunos ao descobrirem que um algoritmo complexo pode ser decodificado não em um livro, mas na beleza de uma trança nagô. Essa é a potência da Etnomatemática. Use os diferentes estilos de trançado para explorar padrões de repetição, sequências e a construção de algoritmos que descrevem o passo a passo de um penteado.
  2. Moda Afro-Brasileira e Geometria: As estampas vibrantes de tecidos africanos e os turbantes são ricos em elementos matemáticos. Experimente usá-los para estudar formas geométricas, simetria, translação e rotação. Atividades de desenho, análise de padrões e criação de novas estampas conectam a cultura à geometria de forma criativa e significativa.

3.2. Construindo um Calendário Antirracista

Para romper com a exclusividade de novembro, crie um calendário com múltiplos pontos de discussão ao longo do ano. As Diretrizes Curriculares sugerem datas importantes que podem orientar o planejamento:

  • 21 de Março: Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.
  • 13 de Maio: Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo. É uma oportunidade para ressignificar a data da Abolição, movendo o foco da celebração de uma “dádiva” para a denúncia das repercussões sociais, políticas e econômicas de uma abolição que não garantiu cidadania plena, deixando a população negra à margem da sociedade.
  • 20 de Novembro: Dia Nacional da Consciência Negra. A data homenageia Zumbi dos Palmares, símbolo da luta e resistência contra a escravidão, e deve ser celebrada como o ápice de um trabalho desenvolvido durante todo o ano.

3.3. Para Além da Escravidão: Celebrando Protagonistas e Saberes

É fundamental apresentar uma perspectiva positiva e de protagonismo, que vá além da narrativa da escravização. Apresente aos alunos a riqueza da história e cultura africana e afro-brasileira.

Sugestões de Temas e Personalidades:

  • Protagonistas Históricos: Explore a vida e a obra de figuras como Zumbi dos Palmares, Luiza Mahin, André Rebouças, Maria Firmina dos Reis e Abdias do Nascimento, mostrando suas contribuições em diversas áreas.
  • Civilizações Africanas: Apresente a grandiosidade de organizações políticas pré-coloniais, como os reinos do Mali e do Congo, e centros de saber como a universidade de Timbuktu, para desconstruir a ideia de um continente sem história.
  • Cultura e Resistência: Estude a história dos quilombos (para além de Palmares), a importância das irmandades religiosas negras e a riqueza de manifestações culturais como as congadas e os maracatus como formas de resistência e preservação cultural.

4. O Caminho para o Sucesso: Ações Estruturantes na Escola

Sabemos que o esforço individual, por mais potente que seja, pode ser exaustivo. Por isso, é fundamental construir um ecossistema de apoio na escola e na rede de ensino. As ações estratégicas a seguir não são apenas boas práticas; elas são o antídoto direto para as armadilhas da “pedagogia do evento” e do “reducionismo histórico” discutidas no início deste guia.

  • Crie uma equipe guardiã: Uma ação de alto impacto é articular a criação de uma “equipe guardiã” na sua rede, designando um profissional ou uma equipe responsável por coordenar e impulsionar as ações relacionadas à lei, garantindo foco e continuidade.
  • Garanta orçamento: A previsão de recursos no orçamento demonstra o compromisso da gestão e viabiliza projetos, a aquisição de materiais e a realização de formações. Dialogue com a sua gestão sobre a importância dessa alocação.
  • Promova formação continuada: A falta de conhecimento é um dos maiores desafios. É essencial que a gestão ofereça formação para todos os profissionais da escola — professores, gestores e equipe de apoio — para instrumentalizá-los e sensibilizá-los.
  • Use materiais didáticos adequados: Incentive a composição de acervos com livros de autores negros e materiais que abordem as relações étnico-raciais de forma positiva e crítica, superando as visões estereotipadas.
  • Estabeleça parcerias: Proponha a colaboração com universidades, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) e grupos do Movimento Negro local. Essas parcerias enriquecem o repertório da escola e fortalecem as ações.

Conclusão: De Utopia a Prática Diária

Para alguns educadores, diante de tantos desafios, a aplicação plena da Lei 10.639/03 pode parecer uma “utopia”. A complexidade é real, mas não intransponível.

Ao adotar os princípios e as ferramentas práticas apresentados neste artigo, é possível transformar essa percepção. A mudança começa com a decisão de ir além de novembro, integrando a riqueza da história e cultura africana e afro-brasileira ao cotidiano escolar. Lembre-se: cada plano de aula, cada livro escolhido, cada conversa em sala é uma oportunidade de construir a educação antirracista que nossos alunos merecem. Você não é apenas um professor; você é um arquiteto de uma sociedade mais justa.

“Ver uma criança valorizando sua raça, sua cor, seu cabelo, sua vestimenta, sua religião, não tem preço.”