4 Lições Surpreendentes de um Currículo Revolucionário

A sensação de que o modelo escolar tradicional está defasado não é nova. Muitos pais, educadores e até alunos sentem um abismo entre o que se aprende na sala de aula e os desafios complexos e interconectados do século 21. Enquanto o mundo acelera, a escola parece operar com um sistema projetado para uma era que já passou. Mas como seria uma educação verdadeiramente preparada para o futuro?

A resposta pode ser encontrada em um trabalho inovador: o livro e currículo “Empoderar Crianças e Jovens para a Cidadania Global“, desenvolvido por uma equipe de especialistas da Universidade de Harvard, liderada pelo professor Fernando Reimers. A obra é tão impactante que Pony Ma, fundador e CEO da gigante de tecnologia Tencent Inc., a descreveu como essencial: “Ele […] me mostrou como criar melhores programas de treinamento corporativo para meus funcionários, além de ampliar meus próprios horizontes culturais.”

Este artigo destila quatro das ideias mais impactantes desse currículo revolucionário — ideias que revelam verdades surpreendentes, como o fato de que a “escola do futuro” tem raízes mais antigas que a própria democracia moderna.

1. Nossas escolas ainda operam com um “software” do século 20.

O principal argumento do livro é um diagnóstico contundente: a maioria das escolas ainda opera sob o “modelo industrial de ensino do século 20”. Esse sistema foi desenhado para um mundo que não existe mais, baseado em “conhecimentos enciclopédicos”, “fragmentados” e no desenvolvimento de “competências mecânicas” e rotineiras. O objetivo era preparar trabalhadores para uma economia industrial, não cidadãos para uma sociedade global.

O problema é que os desafios atuais exigem um conjunto de habilidades completamente diferente. Em vez de memorização e repetição, o século 21 demanda pensamento crítico, resolução de problemas complexos, colaboração intercultural e competência global. Manter o “software” antigo é preparar os jovens para o passado, desconectando-os dos grandes desafios globais, como os delineados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.

Como reforça Claudia Costin, Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (CEIPE-FGV), a mudança precisa ser estrutural:

Quando um currículo enfatiza conhecimentos fragmentados e enciclopédicos, a formação docente tenderá a ser fragmentada e superficial, impactando negativamente a aprendizagem. Nesse sentido, temos que repensar o currículo, os planos de aula e as estratégias pedagógicas, com enfoque em competências globais…

2. “Cidadania Global” não é uma ideia nova — suas raízes são mais antigas que a democracia moderna.

Pode parecer que o conceito de “cidadania global” é uma tendência recente, nascida da era da internet. No entanto, o livro revela uma verdade surpreendente: a ideia de ensinar sobre diferentes culturas e sobre uma humanidade compartilhada é “tão antiga quanto a própria educação”.

As raízes desse pensamento, conhecido como “cosmopolitismo”, remontam a pensadores como Terêncio, na República Romana. Séculos depois, durante a colonização espanhola da América Latina, a ideia foi revitalizada por figuras como Bartolomeu de las Casas, que desafiou a violência contra os povos indígenas argumentando que a humanidade era uma só. Essa noção, de que todos possuem os mesmos direitos e dignidade, é um dos “pilares dos direitos humanos”.

Essa linha de pensamento atravessou o Iluminismo, com filósofos como Kant propondo a necessidade de uma “lei cosmopolita para prevenir a guerra”. Crucialmente, os movimentos filosóficos do Iluminismo não foram apenas os “alicerces para a criação de sociedades democráticas”, mas foram “fundamentais também para a criação da educação pública”. O próprio conceito de escola pública nasce dessa filosofia cosmopolita. Essa profunda fundação histórica prova que educar para a cidadania global não é uma tendência passageira, mas um componente central de como a humanidade sempre buscou construir sociedades melhores e mais estáveis.

3. Educar para o mundo não é idealismo, é gerenciamento de risco.

A proposta de Reimers e sua equipe afasta a educação global do campo do idealismo e a posiciona no centro da pragmática. Ensinar competência intercultural não é apenas “bom”, é uma necessidade crítica para a estabilidade global.

Essa perspectiva nasceu das cinzas da Segunda Guerra Mundial. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundamentada na esperança de formar um “novo tipo de cidadão – um cidadão global – capaz de equilibrar interesses” para evitar que uma catástrofe daquela magnitude se repetisse.

Essa necessidade não diminuiu; apenas evoluiu. O livro conecta diretamente a educação para a cidadania global à mitigação das ameaças modernas identificadas por instituições como o Fórum Econômico Mundial. A proposta se alinha diretamente com os grandes pactos globais. Conforme afirma a obra, “A educação para a cidadania global é reconhecida no Objetivo 4 da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável… como uma ferramenta crucial para colocar os estudantes no caminho do enfrentamento dos desafios transnacionais modernos”.

Dessa perspectiva, ensinar jovens a colaborar para além das fronteiras e a compreender sistemas complexos não é um luxo. É uma das ferramentas mais práticas que temos para gerenciar riscos e preparar a próxima geração para solucionar os desafios — mudanças climáticas, pandemias, crises econômicas — que inevitavelmente herdarão.

4. A melhor aula de economia global acontece em uma fábrica de chocolate (criada por crianças de 8 anos).

Como tudo isso se traduz na prática? O currículo oferece exemplos concretos e inspiradores. Uma das propostas mais marcantes é destinada a alunos do terceiro ano (crianças de 8 anos): aprender sobre interdependência global através de um “projeto de empreendimento social em fabricação de chocolate”.

Nesse projeto, os alunos não apenas aprendem a fazer chocolate. Eles mergulham em toda a cadeia de produção global, investigando de onde vem o cacau (principalmente países da África Ocidental) e compreendendo conceitos complexos como a ética do livre comércio e o grave problema do trabalho infantil na indústria.

A atividade culminante é puramente prática: as crianças criam uma campanha de marketing para o chocolate que produziram. O desafio? A campanha deve ser adaptada para a cultura específica de um mercado-alvo em outro país. Elas aprendem, na prática, sobre economia, ética, marketing e antropologia cultural — tudo a partir de uma barra de chocolate.

Conforme demonstrado, este currículo revolucionário é construído sobre um diagnóstico claro de nosso sistema ultrapassado, fundamentado em uma sabedoria filosófica antiga, impulsionado por um pragmático gerenciamento de riscos e trazido à vida por meio de projetos tangíveis. É um modelo holístico que vai além da memorização de fatos fragmentados para cultivar habilidades, uma orientação ética baseada nos direitos humanos e um senso de agência no mundo. Se a escola que conhecemos foi desenhada para o passado, que única habilidade ou valor seria indispensável ensinar hoje para preparar as crianças para um futuro que mal podemos imaginar?

 

Fonte: 

REIMERS, Fernando M. et al. Empoderar crianças e jovens para a cidadania global: fundamentos e programa com atividades e referências, da educação infantil ao ensino médio . São Paulo: Moderna, 2017.